A Emenda Constitucional nº 132, de 2023, representou uma das reformas mais amplas já realizadas no sistema tributário brasileiro. Com a substituição de tributos como ICMS, ISS, PIS e Cofins por dois novos tributos sobre o consumo — o Imposto sobre Bens e Serviços (IBS) e a Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS) —, buscou-se corrigir distorções históricas e oferecer um modelo mais neutro, uniforme e simples.
A promessa de não cumulatividade ampla foi um dos pontos centrais da reforma, pois estabeleceu que o contribuinte teria o direito de se creditar de todo imposto pago nas etapas anteriores, desde que os bens ou serviços fossem adquiridos no exercício da atividade econômica. Essa mudança se alinhou às melhores práticas internacionais, principalmente à ideia de que tributos sobre consumo devem recair apenas sobre o valor agregado e jamais incidir de forma acumulada.
Dentro dessa lógica, o texto constitucional trouxe o princípio da neutralidade como diretriz interpretativa essencial, exigindo que o sistema tributário não influencie artificialmente as escolhas de produção, investimento ou consumo dos agentes econômicos. Com esse fundamento, o modelo prometido afastou critérios arbitrários anteriormente usados para limitar o aproveitamento de créditos, como a exigência de essencialidade ou habitualidade.
O objetivo declarado foi permitir que o crédito refletisse a função econômica dos bens ou serviços adquiridos, sem que nomenclaturas formais ou juízos morais sobre o tipo de bem interferissem no seu tratamento fiscal. O novo paradigma elevou o direito ao crédito à condição de garantia constitucional, condicionada apenas à vinculação com a atividade econômica, exceto nos casos expressamente ressalvados pela própria Constituição.
Contudo, essa promessa encontra limitação concreta na forma como a Lei Complementar nº 214, de 2025, por meio do artigo 57, regulamentou as exceções ao direito de crédito. A lei tratou especificamente dos chamados bens e serviços de uso ou consumo pessoal, que não geram direito à apropriação do imposto anteriormente pago. Ainda que a Constituição autorize essa exclusão, a lei extrapolou seu papel de detalhamento e, em vez de considerar a destinação efetiva dos bens e serviços, preferiu estruturar uma tipologia baseada em presunções genéricas. Para isso, dividiu os casos de restrição ao crédito em três grupos principais.
No primeiro grupo, a lei menciona expressamente joias, pedras e metais preciosos, obras de arte, bebidas alcoólicas, produtos do tabaco, armas e munições, além de itens estéticos, recreativos e esportivos. A vedação ao crédito incide mesmo quando esses bens integram de forma funcional a operação empresarial, sendo revertidos diretamente em receita tributada, ao passo que, ato contínuo, criou um critério subjetivo indeterminado, visto que existem operações e atividades que exigem mais de uma atividade econômica em conjunto. Apenas algumas exceções foram previstas, como no caso de bens que serão revendidos ou utilizados na fabricação de outros produtos destinados à venda.
Nessa esteira, percebe-se um critério subjetivo indeterminado, visto que existem operações e atividades que exigem mais de uma atividade econômica em conjunto. A exemplo, uma galeria de arte que adquire obras para exposição e venda, há duas situações, a prestação de serviço para a exibição de obras e algumas obras podem ser objeto de venda. A lógica de atividade econômica e a relação do bem é mais complexa do que a legislação possa abordar.
Desse modo, a legislação atribui que a mera classificação desses itens gera uma interpretação da natureza do bem e preceitua sobre seu usou ou a complexidade de determinadas atividades econômicas. Nesse sentido, mesmo as hipóteses de exceção encontram limitações rigorosas, pois considera uma presunção que despreza o contexto setorial e faz uma exigência de “comprovação da preponderância do uso”, ou seja, transfere ao contribuinte o ônus de afastar uma presunção arbitrária, frequentemente interpretada em regra de forma restritiva pela administração fiscal. Portanto, a lista fechada não considera o contexto específico de segmentos como hotelaria de alto padrão, empresas de entretenimento, galerias de arte ou clubes recreativos, que incorporam muitos desses bens como parte essencial da sua atividade econômica e que, por essa razão, deveriam gozar do direito ao crédito como regra e não como exceção.
O segundo grupo trata da restrição ao crédito quando o contribuinte fornece bens ou serviços gratuitamente, ou por valores abaixo do mercado, a pessoas físicas relacionadas, como sócios, empregados e seus familiares. A norma visa coibir práticas que, sob aparência de despesas empresariais, ocultam remunerações ou transferências patrimoniais de caráter pessoal. No entanto, a rigidez da regra compromete o reconhecimento de despesas legítimas, previstas em acordos coletivos e políticas de recursos humanos, como benefícios relacionados à saúde, alimentação, transporte ou educação.
Embora a lei reconheça algumas exceções, como os casos em que esses benefícios são oferecidos nas dependências do empregador e durante o expediente, essa delimitação reduz a eficácia da norma e limita a isonomia entre contribuintes. Muitas empresas, especialmente as de menor porte, terceirizam esses serviços por razões operacionais ou estruturais. Nesses casos, mesmo que a finalidade da despesa seja diretamente vinculada à atividade econômica e à manutenção do ambiente de trabalho, a restrição ao crédito se impõe de forma injustificada.
As restrições acima, na apropriação de créditos em operações com benefícios aos empregados, desconsideram o conceito de empresa enquanto entidade socioeconômica complexa. Principalmente, quando se considera atividades que exigem alta qualificação ou que operam em regime diferenciado, isto é, as relações exercidas pela entidade não são meras liberalidades, mas compõem o modelo de negócio.
Os custos relacionados as diversas formas de fornecimento ao empregado, não são apenas vinculadas as normas trabalhistas, mas como meio de garantir um ambiente saudável de trabalho, reduzir o turnover e conduzir ao desenvolvimento da entidade, por conseguinte, limitar o direito ao crédito com base apenas na forma de concessão e não em sua função econômica, compromete a coerência do sistema de creditamento.
Legislação desvia-se do espírito da reforma
No terceiro grupo, a vedação ao crédito alcança bens e serviços adquiridos por contribuintes pessoa física, mas que não possuem relação com o exercício de atividade econômica. Esse grupo se baseia na ideia de que nem toda aquisição realizada por um contribuinte formal deve resultar em direito ao crédito, especialmente quando a finalidade do bem é puramente pessoal. Ainda que essa lógica pareça coerente à primeira vista, a legislação abre espaço para que regulamentos infralegais ampliem essas hipóteses de restrição.
A delegação excessiva a legislação ordinária, acaba por induzir discussões jurídicas que poderiam ser evitadas no espaço legiferante. Isso gera insegurança jurídica, pois transfere ao Executivo a definição de limites a um direito constitucionalmente assegurado, sem que esses limites estejam previstos de forma clara e objetiva na própria lei complementar.
A crítica que emerge desse cenário não se dirige à existência de restrições ao crédito, pois a Constituição reconhece essa possibilidade. O problema está na forma de execução dessa exceção, pois a utilização de listas taxativas e conceitos vagos despreza a complexidade das atividades econômicas. O crédito tributário, no modelo da não cumulatividade ampla, deve refletir o vínculo entre o custo e a geração de receita tributada.
Quando esse vínculo existe, a vedação ao crédito carece de fundamento técnico e compromete a coerência do sistema. Ao impor restrições baseadas em critérios formais e não funcionais, a legislação desvia-se do próprio espírito da reforma, cuja neutralidade fiscal, um dos pilares da nova estrutura, exige que o sistema não interfira nas escolhas legítimas de organização produtiva, e não pode ser comprometida por classificações que não consideram o uso efetivo dos bens.
O mesmo ocorre com as limitações impostas às empresas que fornecem benefícios a seus empregados por meio de terceiros. A exigência de que a concessão ocorra exclusivamente nas instalações do contribuinte cria uma distinção artificial e injustificada, pois pune modelos empresariais legítimos que, por falta de espaço ou por razões operacionais, optam por outras formas de concessão. A forma de estrutura organizacional não deve ser fator de discriminação fiscal, pois ao privilegiar estruturas organizacionais verticalizadas e desconsiderar a diversidade do tecido produtivo, a norma incorre em violação ao princípio da isonomia.
As falhas se estendem também ao regime de estorno proporcional dos créditos. A regra que prevê a devolução parcial do crédito quando o bem passa a ser utilizado para fins pessoais demonstra um avanço conceitual, pois reconhece a possibilidade de uso misto de ativos. No entanto, a ausência de critérios objetivos para mensurar a proporção do uso, definir a vida útil dos bens e estabelecer os parâmetros de cálculo das penalidades impede a aplicação segura e uniforme da norma.
A previsibilidade é um dos fundamentos do sistema tributário, logo, a incerteza normativa amplia o risco de litígios, tornando-a ineficaz na prática. Isso implica que o legislador defina com precisão os mecanismos de operacionalização da regra, sob pena de esvaziamento da sua funcionalidade.
Além disso, o modelo adotado revela uma concepção ultrapassada do crédito tributário. A ideia de que o crédito se trata de uma liberalidade concedida pelo Estado, e não de um direito vinculado à lógica da tributação sobre valor agregado, compromete a evolução do sistema.
O crédito não é favor fiscal, mas mecanismo de preservação da neutralidade e de correção das distorções da tributação indireta. Classificar bens com base em seu nome, aparência ou valor simbólico, em vez da sua função econômica, fere o princípio da substância sobre a forma e fragiliza o sistema como um todo. Nos termos do professor Roque Antônio Carrazza [1], a Constituição delimitou o conteúdo semântico mínimo de cada tributo, e, portanto, não pode a administração pública ou o legislador infralegal corromper a lógica da tributação.
O uso da expressão “consideram-se” para qualificar bens de uso pessoal não pode servir de artifício para o legislador complementar redefinir conceitos constitucionais. O legislador deve detalhar, mas não deturpar. A Constituição impõe limites à regulamentação das exceções, exigindo que elas estejam fundadas em critérios objetivos e aderentes ao princípio da neutralidade. Posto isto, a ampliação de restrições por meio da criação de ficções legais desconectadas da realidade econômica ou categorias arbitrárias ou listas inflexíveis, distorce o sistema tributário e fere diretamente o texto constitucional, por comprometer a integridade do modelo de não cumulatividade ampla.
Nessa esteira, a regulamentação expressa na Lei Complementar nº 214, de 2025, ao tratar das exceções previstas na Emenda Constitucional nº 132, de 2023, revela um descompasso entre o texto legal e os preceitos estruturantes da reforma tributária, especialmente, ao princípio da neutralidade e à não cumulatividade ampla. A forma e a aplicação da fixação de critérios subjetivos — seja por meio de listas taxativas, pelo fornecimento do bem ou a qualificação dos indivíduos — para vedar o direito ao crédito fere diretamente o núcleo constitucional, que exige uma análise funcional e econômica das operações.
Em síntese, a Lei Complementar nº 214, ao regulamentar a restrição ao crédito de bens de uso e consumo pessoal, extrapolou os limites autorizados pela Constituição. A promessa de neutralidade e simplicidade não se efetivará enquanto o sistema continuar preso a filtros formais, presunções inflexíveis e delegações excessivas ao regulamento. Para que a reforma tributária alcance seus objetivos, será necessário revisar essas disposições com base na realidade das atividades econômicas e no compromisso com a coerência entre normas e princípios constitucionais. O crédito precisa refletir a substância da operação, respeitar o uso econômico dos bens e assegurar que o tributo incida apenas sobre o valor efetivamente agregado, sem interferências artificiais.
Publicado no ConJur.
[1] CARAZZA, Roque Antônio. Impossibilidade de conflitos de competência no sistema tributário brasileiro. São Paulo: IBET, 2019. Disponível aqui.