Ayres Westin Advogados

Armadilha da informalidade no lucro presumido: lições do Carf

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Em uma decisão recente, o Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) reacendeu um debate fundamental no cenário tributário brasileiro: a imperiosa necessidade de uma contabilidade formal e rigorosa, mesmo para empresas que optam pelo regime do lucro presumido. Embora este tema já tenha sido objeto de inúmeras análises e orientações ao longo dos anos, o desconhecimento ou a negligência de algumas empresas em relação à sistemática de tributação e suas implicações na distribuição de lucros continuam a desaguar em autuações fiscais onerosas e, muitas vezes, irreversíveis.

Para compreender a relevância da decisão do Carf, é necessário revisitar a finalidade da sistemática do lucro presumido. Conforme detalha Edmar O. Andrade Filho em seu Livro Lucro Presumido (Ebook), Capítulo 1, Seção 1.1, a expressão “lucro presumido” designa um regime de apuração do Imposto sobre a Renda da Pessoa Jurídica (IRPJ) e da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL) que se baseia na aplicação de percentuais sobre a receita bruta.

“A expressão ‘lucro presumido’ tem pelo menos duas significações. Ela designa um regime de apuração do IRPJ e da CSLL e faz referência à base de cálculo prevista nas normas que dispõem sobre esse regime; essa base de cálculo é apurada tomando-se os valores das receitas obtidas em cada trimestre com pouquíssimas deduções.”

A grande atratividade desse regime reside, de fato, na sua simplificação. Ele foi concebido para facilitar a apuração da base de cálculo do imposto, especialmente para empresas que, por sua natureza ou porte, poderiam não possuir controles contábeis tão acurados e complexos quanto os exigidos para o regime do lucro real. A ideia era propiciar que essas empresas apurassem e recolhessem seus impostos de forma mais acessível, sem a obrigação de manter uma estrutura contábil sofisticada que poderia ser desproporcionalmente cara para o tipo de negócio. Contudo, essa facilitação não implica em uma dispensa total das formalidades contábeis, especialmente quando se trata da distribuição de lucros. É aqui que reside a “armadilha” para muitos.

O Acórdão nº 2102-003.581 do Carf, referente aos anos-calendário de 2011 e 2012, ilustra perfeitamente essa nuance. No caso em questão, um contribuinte foi autuado por ter declarado o recebimento de lucros isentos do Imposto de Renda da Pessoa Física (IRPF) provenientes de uma empresa que operava sob o regime do lucro presumido. A fiscalização questionou a isenção desses lucros, considerando-os excedentes ao lucro presumido ou ao lucro efetivo comprovado.

A essência da decisão proferida pelo Carf é cristalina e encontra-se em plena consonância com o arcabouço legal vigente. O colegiado reafirmou que a isenção do Imposto sobre a Renda da Pessoa Física (IRPF) sobre lucros distribuídos é aplicável até o limite do lucro presumido, após a dedução dos impostos e contribuições devidos. Contudo, para que a isenção se estenda a valores que excedam esse limite, torna-se imperativa a comprovação por meio de escrituração contábil regularmente mantida em conformidade com a legislação comercial. Tal entendimento é explicitado no Acórdão Carf nº 2102-003.581, Processo nº 10855.722350/2016-07:

“É isento do imposto de renda da pessoa física o lucro distribuído até o limite do lucro presumido, líquido de impostos e contribuições, ou se for superior ao lucro presumido, se houver comprovação por escrituração mantida em conformidade com a legislação comercial.”

No entanto, a empresa em questão não obteve sucesso em apresentar essa comprovação. O relatório fiscal, que fundamentou a decisão, apontou uma série de irregularidades que comprometeram a validade probatória da escrituração comercial da empresa, conforme se depreende do acórdão:

“(a) Livro Diário de 2011 autenticado em 18/05/2016, ou seja, 5 anos após o ano em que foi escriturado; (b) irregularidades na contabilização do lucro ente Diário e Razão; (c) Não apresentação da documentação contábil no prazo da fiscalização (fls. 1058/1059).”

A decisão do Carf enfatiza que a falta de formalidades legais na escrituração comercial, como a autenticação tempestiva do Livro Diário e a comprovação da efetiva existência dos lucros, enseja a sua desconsideração pela autoridade fiscal.

Este caso serve como um alerta contundente: a simplificação do lucro presumido não é um salvo-conduto para a informalidade contábil. Pelo contrário, exige ainda mais atenção à forma quando se busca comprovar algo além do presumido.

Distribuição de lucros: ponto sensível

A distribuição de lucros e dividendos, embora seja uma prerrogativa inerente aos sócios, tem sua concretização intrinsecamente vinculada à estrita observância das normas de direito societário e tributário. O direito de “participar dos lucros sociais”, assegurado de forma expressa pela Lei nº 6.404/76 (Lei das S.A.), em seu artigo 109, I, que dispõe:

“Nem o estatuto social nem a assembleia-geral poderão privar o acionista dos direitos de:

I – participar dos lucros sociais;”

Este direito fundamental, contudo, não se confunde com a efetiva e imediata percepção desses valores. Para que os lucros sejam efetivamente disponibilizados, é imprescindível que tenham sido gerados, devidamente registrados em balanço patrimonial aprovado, e que sua distribuição seja formalmente deliberada pelos órgãos de gestão da companhia.

A legislação impõe uma proibição expressa à distribuição de quaisquer proventos que não encontrem respaldo em uma apuração contábil fidedigna. A razão para essa restrição reside na própria natureza da distribuição de lucros, que envolve a alocação de recursos do patrimônio da empresa para os acionistas. A ausência de um suporte contábil e financeiro adequado para essa operação comprometeria a segurança dos credores, afetaria a estabilidade econômica da empresa e minaria a confiança nas relações jurídicas e comerciais.

A Lei nº 9.249/95, em seu artigo 10, estabelece a isenção do Imposto de Renda na fonte sobre lucros ou dividendos distribuídos por pessoas jurídicas tributadas com base no lucro real, presumido ou arbitrado, desde que apurados a partir de janeiro de 1996, nos seguintes termos:

“Os lucros ou dividendos calculados com base nos resultados apurados a partir do mês de janeiro de 1996, pagos ou creditados pelas pessoas jurídicas tributadas com base no lucro real, presumido ou arbitrado, não ficarão sujeitos à incidência do imposto de renda na fonte, nem integrarão a base de cálculo do imposto de renda do beneficiário, pessoa física ou jurídica, domiciliado no País ou no exterior.”

Para as empresas do lucro presumido, a Instrução Normativa RFB nº 1.700/2017, em seu artigo 238, § 2º, II, detalha as condições para essa isenção. Além do valor da base de cálculo do imposto (diminuído dos tributos), a isenção pode abranger a parcela de lucros ou dividendos que exceda esse valor, desde que a empresa demonstre, com base em escrituração contábil feita com observância da lei comercial, que o lucro efetivo é maior que o determinado pelas normas do lucro presumido.

É exatamente nesse ponto que muitas empresas do lucro presumido encontram dificuldades. Embora o regime permita uma escrituração mais simplificada, a comprovação de lucros efetivos para fins de distribuição isenta exige uma contabilidade mais robusta, em conformidade com a lei comercial. O Carf tem sido consistente em exigir essa formalidade, como demonstrado no Acórdão nº 2301-007.126, de 4 de março de 2020, que afirma que a falta de escrituração contábil feita com observância da lei comercial pode levar à tributação dos valores excedentes.

Quando o montante dos lucros distribuídos não possui lastro em registros contábeis válidos ou em balanço regularmente levantado, ou excede o valor determinado de acordo com o regime contábil adotado e não há comprovação formal do lucro efetivo, a isenção prevista no artigo 10 da Lei nº 9.249/95 não se aplica integralmente.

Nesses casos, a Instrução Normativa RFB nº 1.700/2017, em seus §§ 3º e 4º do artigo 238, estabelece a seguinte gradação de consequências:

Imputação e tributação normal: A parcela dos rendimentos distribuídos que exceder o valor apurado com base na escrituração (ou que não puder ser comprovada por ela) será imputada aos lucros acumulados ou reservas de lucros de exercícios anteriores. Se houver lastro suficiente nessas reservas, o valor não será isento, mas ficará sujeito à incidência do imposto sobre a renda calculado segundo o disposto na legislação específica, ou seja, às alíquotas normais aplicáveis ao beneficiário (pessoa física ou jurídica).

Tributação majorada (35%): Inexistindo lucros acumulados ou reservas de lucros em montante suficiente para cobrir a parcela excedente, esta será submetida à tributação nos termos do artigo 61 da Lei nº 8.981/95, com a aplicação de uma alíquota de 35% calculada “por dentro”. Esses pagamentos são considerados “sem causa”, equiparando- se a pagamentos a beneficiários não identificados, o que acarreta uma carga tributária substancialmente maior.

Portanto, a armadilha da informalidade começa com a perda da isenção, levando à tributação normal do IR, e pode escalar para a penalidade máxima de 35% caso não haja lastro contábil algum.

Além disso, é importante destacar que o Regulamento do Imposto de Renda (RIR/2018) impõe uma vedação expressa à distribuição de rendimentos de participações por pessoas jurídicas que possuam débitos fiscais não garantidos, sob pena de multas severas. Conforme o artigo 1.018 do RIR/2018:

“As pessoas jurídicas que, enquanto estiverem em débito, não garantido, por falta de recolhimento de imposto sobre a renda no prazo legal não poderão:

I – distribuírem quaisquer bonificações a seus acionistas; ou

II – darem ou atribuírem participação de lucros a seus sócios ou quotistas, e a seus diretores e demais membros de órgãos dirigentes, fiscais ou consultivos.

§1º A inobservância do disposto no caput acarretará multa que será imposta (Lei nº 4.357, de 1964, art. 32, § 1º e § 2º):

I – às pessoas jurídicas que distribuírem ou pagarem bonificações ou remunerações, em montante igual a cinquenta por cento das quantias distribuídas ou pagas indevidamente; e

II – aos diretores e aos demais membros da administração superior que receberem as importâncias indevidas, em montante igual a cinquenta por cento dessas importâncias.

§2º. A multa a que se refere os incisos I e II do caput fica limitada a cinquenta por cento do valor total do débito não garantido da pessoa jurídica.”

Contabilidade como pilar da conformidade

Portanto, a decisão do Carf no Acórdão nº 2102-003.581 é um lembrete oportuno e claro de que a simplificação do lucro presumido, embora benéfica para a gestão tributária de muitas empresas, não as exime da responsabilidade de manter uma escrituração contábil adequada e formal. A flexibilidade oferecida pelo regime não deve ser confundida com a ausência de controles ou com a permissão para a informalidade.

Para que a distribuição de lucros ocorra de forma isenta e segura, é imperativo que as empresas, mesmo as do lucro presumido, invistam em uma contabilidade que não apenas atenda às exigências fiscais mínimas, mas que também esteja em plena conformidade com a legislação comercial. Isso inclui a manutenção de livros contábeis devidamente escriturados, autenticados e com informações que reflitam a real situação patrimonial e financeira da empresa.

Negligenciar essas formalidades pode transformar a aparente simplicidade do lucro presumido em uma armadilha custosa, resultando em autuações fiscais que minam os benefícios que o regime deveria proporcionar. A lição do Carf é clara: a conformidade contábil é o pilar inegociável para a segurança jurídica e tributária na distribuição de lucro. 

Publicado no ConJur. 

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