Por Matheus Fellipe Pereira e Maria Clara Brugger Garcia
A tributação antecipada do ganho por compra vantajosa gera insegurança jurídica, viola a capacidade contributiva e pode desestimular reorganizações societárias no Brasil.
As operações de fusão, aquisição e reorganização societária sempre fizeram parte do cenário empresarial brasileiro. No entanto, foi principalmente a partir da década de 1990, com o fortalecimento da economia de mercado, a abertura comercial e as privatizações, que essas operações passaram a ter mais destaque e complexidade. Esse novo ambiente de negócios exigiu das empresas o desenvolvimento de novas estratégias, incentivando o uso de transformações societárias como forma de expandir, organizar ou até mesmo reestruturar suas atividades econômicas.
Com o aumento das operações de M&A (mergers and acquisitions), notadamente fusões e aquisições, o panorama corporativo sofreu mudanças substanciais. Paralelamente, surgiram novos desafios jurídicos, contábeis e, sobretudo, tributários. Se antes tais operações eram restritas aos grandes conglomerados econômicos, hoje elas integram o planejamento estratégico de diversas empresas de médio porte, trazendo à tona discussões relevantes no âmbito fiscal. Entre os temas mais debatidos, destacam-se os efeitos tributários do ágio, do deságio e do chamado ganho por compra vantajosa (bargain purchase), conceitos oriundos da contabilidade, mas com impactos diretos na apuração da base de cálculo dos tributos incidentes sobre a renda.
O ágio representa a quantia paga a mais por uma participação societária em relação ao valor contábil do patrimônio líquido da empresa adquirida. Esse montante adicional normalmente reflete fatores intangíveis, como reputação, marca, carteira de clientes ou a expectativa de lucros futuros. Enquanto o deságio ocorre quando a aquisição se dá por um valor inferior ao patrimônio líquido, o que pode decorrer de dificuldades financeiras enfrentadas pelo alienante, urgência na venda ou percepção de riscos atrelados à operação, fatores estes que tornam a transação potencialmente mais vantajosa para o adquirente.
É justamente nesse contexto que se insere o ganho por compra vantajosa. Esse conceito ganhou relevância com a introdução das normas internacionais de contabilidade (IFRS) no ordenamento jurídico brasileiro, especialmente a partir da promulgação da lei 12.973/14. Nos termos desta lei, quando o valor de aquisição de uma empresa é inferior ao valor justo dos ativos líquidos adquiridos, a diferença deve ser reconhecida contabilmente como receita no resultado do exercício. Assim, aquilo que antes era tratado como simples deságio passou a ter consequências diretas sobre a tributação no que se refere à renda.
Contudo, embora esse novo modelo contábil represente um avanço em termos de transparência e aderência à realidade econômica, ele provocou importantes controvérsias no campo tributário. A principal controvérsia reside no fato de que a lei 12.973/14 determina que o ganho por compra vantajosa seja registrado no momento da aquisição da participação societária e diferido para fins de tributação até a efetiva realização do ganho, salvo nas hipóteses de fusão, cisão ou incorporação. Nessas situações, a lei autoriza a tributação antecipada do referido ganho, limitada à fração de um sessenta avos por mês de apuração, conforme dispõe o art. 23 para empresas relacionadas e art. 27 para os demais casos.
Cumpre destacar que anteriormente à legislação ora discutida, a amortização contábil dos ágios, ou deságios, possuía uma característica neutra, isto é, não havia implicações tributárias diretas por não integrar o lucro tributável até a liquidação, alienação ou baixa do investimento. Contudo, a partir, dos art. 7º e 8º da lei 9.532/1997, na hipótese de ocorrência de fusão, cisão ou incorporação com a absorção do patrimônio da pessoa jurídica cuja participação societária fora adquirida com ágio ou deságio, passaram a ter tratamento tributário distinto.
Posto isto, na hipótese de expectativa de rentabilidade futura, poderia ser amortizado o valor do ágio e deveria ser tributado o deságio no prazo de cinco ano, à razão de 1/60 para cada mês de apuração. Nas demais hipóteses econômicas, a dedução ou a incidência tributária somente se tornavam possíveis após a efetiva realização dos direitos, sua transferência ou a liquidação do investimento.
Ocorre que essa antecipação de tributação suscita sérias dúvidas quanto à sua compatibilidade com os princípios constitucionais que norteiam o direito tributário brasileiro, especialmente o da capacidade contributiva e o da realização da renda. Isso porque o fato de o ganho ter sido contabilmente reconhecido não implica, necessariamente, que ele represente um acréscimo patrimonial efetivo ou uma disponibilidade econômica que justifique a cobrança de tributos.
A situação se torna ainda mais delicada no caso de empresas optantes pelo regime de lucro presumido, uma vez que a legislação tributária vigente não estabelece regras específicas. Nesses casos, a tributação segue a sistemática do lucro presumido, que utiliza como base de cálculo a receita bruta e outros ganhos efetivamente auferidos no período, o que implica que o ganho só será tributado caso ocorra a alienação ou redução do investimento, no entanto pela falta de uma regra específica o fisco pode interpretar e questionar o momento do recolhimento.
Por outro lado, as empresas sujeitas ao regime do lucro real enfrentam maior impacto fiscal, uma vez que a antecipação da tributação pode afetar o fluxo de caixa e comprometer a viabilidade financeira da reorganização societária.
A ausência de parâmetros objetivos e a dualidade entre os regimes de apuração resultam em insegurança jurídica e elevam o risco de autuações fiscais, especialmente diante da ausência de consenso sobre o momento adequado para a incidência tributária.
Tal cenário compromete não apenas a previsibilidade das operações, mas também a própria isonomia entre os contribuintes. A imposição de tributos sobre receitas meramente contábeis, ainda não materializadas economicamente, pode gerar tratamento desigual entre empresas com situações econômicas semelhantes, violando, assim, o princípio da isonomia consagrado na Constituição Federal tributária1.
Ademais, a antecipação da tributação de um ganho que ainda não foi efetivamente realizado pode afetar a dinâmica do mercado de fusões e aquisições. A insegurança quanto aos efeitos fiscais pode desestimular operações legítimas de reorganização empresarial, comprometendo estratégias de crescimento, reestruturação e saneamento financeiro. Em um ambiente marcado por alta carga tributária e regras complexas, a clareza normativa e o respeito aos princípios constitucionais são indispensáveis para garantir a confiança dos agentes econômicos.
Embora haja doutrinadores que defendam a tributação antecipada com base no princípio de justiça fiscal, tal entendimento não afasta a necessidade de compatibilizar as normas contábeis com os postulados constitucionais. A tributação deve incidir sobre rendas efetivamente realizadas, que representem acréscimo patrimonial concreto e disponibilidade econômica, em consonância com o art. 43 do CTN2 e o art. 153, inciso III, da Constituição Federal.3
Nos dizeres, de Aliomar Baleeiro, “somente se legitimará a tributação da renda e dos proventos de qualquer natureza, assim entendido o acréscimo de riqueza”4, logo, toda grandeza econômica que não configure “acréscimo de riqueza” descaracteriza o tributo, tornando-o inconstitucional.
A confusão do fisco é transformar uma norma contábil em fato gerador do tributo. Para compreensão, o pronunciamento técnico 15 (CPC) no item 345, traz o conceito de compra vantajosa, assim entendida como sendo uma combinação de negócios cujo valor dos ativos líquidos identificáveis adquiridos, deduzidos dos passivos assumidos, é superior à soma da contraprestação transferida, da participação de não controladores e, se aplicável, do valor justo de participações anteriormente detidas. Contudo, é preciso que a entidade realize a identificação e mensuração com base nos critérios contábeis para refletir nas contas de resultado, o suposto reflexo econômico da negociação, mas que não se trata de uma disponibilidade econômica imediata.
Para exemplificar, imagine que a empresa Alfa Ltda adquire a empresa Beta S/A, que está passando por dificuldades financeiras. O patrimônio líquido a valor justo da Beta é de R$ 10 milhões, porém, a Alfa Ltda adquiriu pelo valor de R$ 7 milhões. Ocorre, portanto, um ganho por compra vantajosa de R$ 3 milhões, que contabilmente a Alfa deverá registrar tal valor como receita, de acordo com o CPC/15 e a legislação.
Ora, o que se verifica não é acréscimo de renda no caixa da Alfa Ltda e, sim um reconhecimento contábil de que houve um bom negócio, mas que no futuro poderá ser revertido, caso seja verificado um passivo da empresa Beta S/A, por conseguinte, o recolhimento antecipado de imposto de renda por ganho por compra vantajosa, se mostra dissonante com a legislação constitucional e o resultado patrimonial.
Desse modo, a contabilidade é mero instrumento para fornecer informações precisas e confiáveis sobre a situação econômica da empresa, mas que em si não se traduz como fato gerador de “acréscimo de renda”, pois se trata de mera expectativa de realização a longo prazo.
O ente estatal ao tributar de forma antecipada um ganho fictício, desconhece que o tratamento contábil é mero fenômeno que reflete uma assimetria econômica favorável ao adquirente, decorrente de situações como liquidações forçadas, dificuldades financeiras da empresa adquirida ou negociações conduzidas sob desequilíbrios de poder econômico, que pode ser alterada no momento da liquidação, alienação ou baixa do investimento.
Nessa esteira, caso o fato econômico futuro desse ganho não venha a se concretizar, também deverá ser contabilizado, visto que, a matéria contábil por mais que seja um norte no tratamento tributário não pode ser um elemento conector definitivo na caracterização do fato gerador do tributo em si.
Assim, mais do que uma questão contábil ou uma disputa interpretativa sobre normas fiscais, a discussão em torno da tributação do ganho por compra vantajosa revela um impasse mais profundo: qual é o limite legítimo da atuação do Estado na cobrança de tributos sobre algo que ainda não se traduziu em riqueza concreta? Em um cenário econômico cada vez mais dinâmico e instável, em que operações societárias se tornam estratégias comuns, manter uma lógica tributária que antecipa a incidência do imposto antes da efetiva realização do ganho é, na prática, ignorar a complexidade do ambiente empresarial e comprometer a própria função do tributo como expressão de capacidade contributiva.
Publicado no Migalhas
https://www.migalhas.com.br/depeso/434980/compra-vantajosa-e-tributo-o-impasse-do-ganho-no-brasil v
Referências Bibliográficas
1 Art. 145. §1º Sempre que possível, os impostos terão caráter pessoal e serão graduados segundo a capacidade econômica do contribuinte, facultado à administração tributária, especialmente para conferir efetividade a esses objetivos, identificar, respeitados os direitos individuais e nos termos da lei, o patrimônio, os rendimentos e as atividades econômicas do contribuinte.
2 Art. 43. O imposto, de competência da União, sobre a renda e proventos de qualquer natureza tem como fato gerador a aquisição da disponibilidade econômica ou jurídica:
I – de renda, assim entendido o produto do capital, do trabalho ou da combinação de ambos;
3 Art. 153. Compete à União instituir impostos sobre:
III – renda e proventos de qualquer natureza;
4 BALEEIRO, Aliomar. Direito Tributário Brasileiro. Atualizado por Misabel Abreu Machado Derzi. 12.ed. Rio de Janeiro: Forense, 2013, p.425.
5 CPC 15. Combinação de Negócios. Brasília, 3 de junho de 2011. Disponível em:< https://s3.sa-east-1.amazonaws.com/static.cpc.aatb.com.br/Documentos/235_CPC_15_R1_rev%2022.pdf>; Acessado em: 15/6/2025.