A Lei nº 12.973/2014 determinou a tributação automática dos lucros de empresas controladas no exterior, mesmo que não creditados ou distribuídos à empresa controladora brasileira. Tal medida visa coibir o diferimento indefinido da tributação por empresas multinacionais, mas fere gravemente o conceito de fato gerador do imposto de renda, previsto no artigo 43 do Código Tributário Nacional, ao tributar rendimentos indisponíveis, presumidos ou fictícios.
Este breve artigo examina a inconstitucionalidade dessa sistemática, destacando a violação ao fato gerador do imposto sobre a renda, bem como a inconstitucionalidade da posição do Supremo Tribunal Federal por ocasião do julgamento do emblemático “caso Embraco”.
O artigo 43 do Código Tributário Nacional (CTN) dispõe que o fato gerador do Imposto de Renda é a aquisição da disponibilidade econômica ou jurídica da renda:
“Art. 43. O imposto, de competência da União, sobre a renda e proventos de qualquer natureza tem como fato gerador a aquisição da disponibilidade econômica ou jurídica:
I – de renda, assim entendido o produto do capital, do trabalho ou da combinação de ambos;
II – de proventos de qualquer natureza, assim entendidos os acréscimos patrimoniais não compreendidos no inciso anterior.”
A disponibilidade econômica da renda se refere à efetiva entrada de recursos no patrimônio do contribuinte, permitindo-lhe o uso ou consumo desses valores. É o poder de dispor efetivo e atual, de quem tem posse direta da renda.
Nas palavras de Alberto Xavier: “A disponibilidade econômica consiste na possibilidade de fruição imediata da renda pelo sujeito passivo, ainda que esta não se apresente revestida das formalidades jurídicas da titularidade. A renda está, por assim dizer, materialmente integrada ao seu patrimônio” (XAVIER, Alberto. Direito Tributário Internacional do Brasil, 2010, p. 211).
Já a disponibilidade jurídica da renda ocorre quando o contribuinte adquire o direito de exigir a renda, mesmo que ainda não a tenha recebido fisicamente. A disponibilidade jurídica é presumida por força de lei e abrange o poder de adquirir a disponibilidade econômica da renda.
Nesse sentido, veja-se as lições de Hugo de Brito Machado: “A disponibilidade jurídica se caracteriza pela existência de um direito subjetivo ao crédito, que pode ser exercido pelo sujeito passivo. Não é necessário o recebimento do valor, mas a existência de uma situação jurídica definida e certa que permita ao contribuinte dispor daquele crédito” (Curso de Direito Tributário, 2018, p. 142).
Alberto Xavier pondera com precisão que lhe era peculiar: “A disponibilidade jurídica se verifica quando, por força de um direito subjetivo líquido e certo, o contribuinte adquire a possibilidade de incorporar a renda ao seu patrimônio mediante simples ato de vontade ou mediante execução judicial” (Direito Tributário Internacional do Brasil, 2010, p. 212).
Portanto, tanto a disponibilidade econômica quanto a jurídica exigem a presença de um elemento de concreção da renda, não bastando projeções contábeis, lucros potenciais ou expectativa futura.
Com a clara intenção de sustentar a chamada “tributação automática dos lucros”, no entanto, foi publicada a lei complementar nº 104 de 2001, que introduziu o §2º ao artigo 43 do Código Tributário Nacional, dispondo que, no caso de receitas oriundas do exterior, a lei disporá sobre as condições e o momento da disponibilidade. Veja-se:
“Art. 43. (…).
§2º. Na hipótese de receita ou rendimento oriundo do exterior, a lei fixará as condições e o momento em que se verificar a disponibilidade.”
O dispositivo transcrito deve, contudo, ser interpretado em conformidade com o caput, ou seja, a lei ordinária pode regulamentar o momento da disponibilidade, mas não criar um fato gerador autônomo baseado em presunção de disponibilidade.
Alberto Xavier foi claro a este respeito: “O §2º do artigo 43 do CTN não autoriza a lei ordinária a inovar na definição do momento da disponibilidade de rendimentos auferidos no exterior, mas apenas a regulamentar os meios pelos quais essa disponibilidade será reconhecida, nos moldes do caput” (XAVIER, Alberto. Do lançamento tributário, 3. ed., Rio de Janeiro: Forense, 2003, p. 267).
Hugo de Brito Machado também adverte: “A regulamentação por lei ordinária do momento da disponibilidade não pode importar na criação de hipótese de incidência tributária diversa da prevista na norma geral.”
Permitir o contrário seria validar a instituição de novo fato gerador para o imposto de renda mediante lei ordinária, o que violaria o artigo 146, III, “a”, da Constituição:
“Art. 146. Cabe à lei complementar:
(…).
III – estabelecer normas gerais em matéria de legislação tributária, especialmente sobre:
a) definição de tributos e de suas espécies, bem como, em relação aos impostos discriminados nesta Constituição, a dos respectivos fatos geradores, bases de cálculo e contribuintes; (…).”
O Supremo Tribunal Federal tem reconhecido, em diferentes contextos, a necessidade de lei complementar para alterar elementos essenciais do fato gerador. Na ADI 1.976, que versava sobre ICMS, o STF deixou clara a necessidade de lei complementar para a definição de elementos essenciais da regra-matriz tributária, tais como o fato gerador de tributos:
“A definição dos elementos essenciais da regra-matriz de incidência tributária — como o fato gerador — exige, obrigatoriamente, a edição de lei complementar, conforme exige a Constituição no art. 146, III.”
Nesse mesmo diapasão, Hugo de Brito Machado reforça: “O momento da ocorrência do fato gerador é elemento essencial do conceito tributário, e como tal, só pode ser definido por meio de lei complementar, nos termos do artigo 146, III, ‘a’ da CF.” (Curso de Direito Tributário, 37ª ed. São Paulo: Malheiros, 2016, p. 154).
Portanto, qualquer tentativa de tributar lucros de controladas no exterior antes de sua efetiva disponibilidade, com base em mera lei ordinária, viola o princípio da legalidade estrita, a reserva de lei complementar e a própria regra-matriz do imposto de renda definida no Código Tributário Nacional.
Os artigos 76 e 79 da Lei nº 12.973/2014 estabelecem a tributação automática de lucros das controladas no ano-calendário em que os lucros tenham sido apurados pela empresa domiciliada no exterior:
“Art. 76. A pessoa jurídica controladora domiciliada no Brasil ou a ela equiparada, nos termos do art. 83, deverá registrar em subcontas da conta de investimentos em controlada direta no exterior, de forma individualizada, o resultado contábil na variação do valor do investimento equivalente aos lucros ou prejuízos auferidos pela própria controlada direta e suas controladas, direta ou indiretamente, no Brasil ou no exterior, relativo ao ano-calendário em que foram apurados em balanço, observada a proporção de sua participação em cada controlada, direta ou indireta.”
“Art. 79. Quando não houver consolidação, nos termos do art. 78, a parcela do ajuste do valor do investimento em controlada, direta ou indireta, domiciliada no exterior equivalente aos lucros ou prejuízos por ela auferidos deverá ser considerada de forma individualizada na determinação do lucro real e da base de cálculo da CSLL da pessoa jurídica controladora domiciliada no Brasil, nas seguintes formas: (Vigência)
I – se positiva, deverá ser adicionada ao lucro líquido relativo ao balanço de 31 de dezembro do ano-calendário em que os lucros tenham sido apurados pela empresa domiciliada no exterior; e (…).”
O referido mecanismo de tributação internacional despreza por completo o conceito de disponibilidade jurídica e/ou econômica da renda como fatos geradores do imposto de renda, criando novo fato gerador do imposto, baseado em mera expectativa de renda.
De acordo com o artigo 43 do CTN, o fato gerador do Imposto de Renda somente nasceria com a deliberação de pagamento de lucros ou dividendos ou com a transferência ou efetivo creditamento dos valores em favor da controladora brasileira.
No caso em questão, não foi isso que se observou das novas normas de tributação internacional trazidas pelos artigos 76 e seguintes da Lei nº 12.973/14. Pretende-se, novamente, a tributação de lucros no exterior (rendas ativas e passivas), mesmo que não creditadas, entregues ou disponibilizadas — de qualquer forma — a sua controlada.
Cumpre registrar, adicionalmente, que os lucros da controlada no exterior podem nunca chegar ao Brasil, sendo utilizados das mais diversas formas pela controlada, como por exemplo, para cobrir prejuízos ou para realização de reinvestimentos locais (situação esta, que, na maioria dos países do mundo, impede a tributação pelas normas CFC).
Ou seja, a Lei 12.973/14 pretende tributar uma “não renda”, como diria o saudoso professor Alberto Xavier.
De outro norte, também não é possível argumentar que a legislação permitiu a criação de um novo fato gerador do imposto sobre a renda, quando se trata de rendimentos oriundos do exterior. Tal situação exigiria, por previsão constitucional, a presença de lei complementar, o que não ocorreu no caso.
Por conseguinte, os artigos 76 e 79 da Lei nº 12.973/14 revelam-se ilegais e inconstitucionais, haja vista a (1) violação ao fato gerador do Imposto de Renda e; (2) tentativa de criação de novo fato gerador do imposto (ou novo tributo) mediante lei ordinária.
Posição do STF: o ‘caso Embraco’ (RE 541.090/SC)
O Recurso Extraordinário nº 541.090 (caso Embraco), julgado em 10/4/2013, tratou diretamente da constitucionalidade da tributação automática dos lucros de controladas e coligadas no exterior estabelecida pelo artigo 74 da Medida Provisória nº 2.158-35/2001.
Diferentemente do “caso Coamo” (Aruba), analisado na mesma sessão pelo Supremo Tribunal Federal (STF), o caso Embraco envolvia empresas com sede em jurisdições não consideradas paraísos fiscais, como China, EUA, Itália e Uruguai.
Na ocasião, o relator, ministro Joaquim Barbosa, abriu divergência sobre a extensão territorial da tributação automática, entendendo que fazia sentido aplicar a sistemática apenas para empresas em paraísos fiscais, no entanto, o ministro Teori Zavascki, apoiado por Rosa Weber, Dias Toffoli, Carmen Lúcia e Gilmar Mendes, deu provimento parcial ao recurso da União, considerando constitucional a tributação automática dos lucros de controlada situada em país com tributação regular da renda.
Em seu voto, o ministro Teori Zavascki alegou que não haveria violação ao artigo 43 do CTN, pois a sistemática deveria ser analisada como uma adaptação válida do conceito de disponibilidade, bem embora diferisse da interpretação restritiva que exige distribuição ou direito exigível. Para tanto, utilizou o método da equivalência patrimonial como justificativa para a (inconstitucional) tributação automática dos lucros.
Ao considerar que haveria disponibilidade pelo simples mecanismo contábil do Método de Equivalência Patrimonial, o STF, via ministro Zavascki, criou perigosa ficção jurídica, que ameaça o núcleo do caput do artigo 43 do CTN. Está-se utilizando contabilidade para supor renda, sem comprovação de efetivo direito de uso ou acesso.
A simplória interpretação conferida pelo ministro, no entanto, não se sustenta à luz de suas próprias razões, tendo sido objeto de diversas críticas doutrinárias.
Leandro Paulsen afirmou que a tese de Zavascki “impõe uma adaptação interpretativa preventiva, que acaba por permitir a tributação sobre lucros ainda não evidenciados como disponíveis jurídica ou economicamente” (Direito Tributário Constitucional e Administrativo, 2020, p. 332).
Ricardo Mariz de Oliveira aponta que “o entendimento de que a equivalência patrimonial gera automaticamente disponibilidade é tecnicamente equivocado, pois confunde variação contábil com efetiva renda disponível” (Tributação Internacional, 2019, p. 150).
Ou seja, a decisão suprimiu contornos materiais do fato gerador, substituindo-os por técnica contábil — ainda que tal base não represente renda efetiva, em manifesta violação à Constituição Federal.
O RE nº 541.090 simboliza a tensão entre os conceitos formalistas e materialistas do fato gerador. Embora o STF tenha afirmado a constitucionalidade da tributação automática para controladas em países de tributação regular da renda, essa decisão violou frontalmente os conceitos de disponibilidade jurídica e econômica da renda, transformando expectativa contábil em fato gerador do imposto de renda.
Diante da renovação da composição do STF, espera-se que o tema, quando novamente enfrentado, tenha desfecho baseado na melhor interpretação jurídica, e não em invencionismos descabidos, como se viu no julgado em questão.
A tributação automática dos lucros de controladas no exterior, tal como estruturada na Lei nº 12.973/2014, é materialmente ilegal e inconstitucional. Ao tributar valores ainda não disponíveis, infringe-se o art.io do CTN, o artigo 146, III, “a”, da Constituição; os princípios da capacidade contributiva, legalidade e segurança jurídica.
A jurisprudência do STF, à exceção do caso Embraco, reforça essa conclusão.
A correção legislativa ou judicial desse modelo para preservar a coerência e a justiça do sistema tributário brasileiro torna-se essencial, especialmente diante da aproximação do Brasil a modelos de tributação internacional (v.g. Pilar 2/adicional de CSLL).