Ayres Westin Advogados

A grande vitória da PGFN no CARF e o alerta para a governança corporativa

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Recentemente, uma decisão do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (CARF) reafirmou um entendimento importante sobre a dedutibilidade de despesas e multas para fins de Imposto de Renda de Pessoa Jurídica (IRPJ) e Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL). Embora não tenha gerado o mesmo frisson nas redes sociais de um debate sobre distribuição de dividendos, a decisão no caso Samarco Mineração S.A. e Vale S.A. possui uma ressonância igualmente profunda, se não mais impactante, para a gestão empresarial e a responsabilidade corporativa no Brasil.

Esta vitória estratégica da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN) não apenas manteve autuações de mais de R$ 1,8 bilhão contra as empresas, mas também solidificou a posição fiscal sobre os custos de eventos catastróficos e atos ilícitos, lançando uma luz sobre o verdadeiro preço da indiligência e a dimensão não dedutível de tais passivos.

O epicentro do conflito: O desastre de Mariana e a questão da dedução fiscal

Para compreender a amplitude da decisão do CARF, é imperativo revisitar a origem do litígio: o trágico rompimento da barragem de Fundão, em Mariana (MG), em 5 de novembro de 2015. Esse evento, reconhecido como um dos maiores desastres ambientais globais, desencadeou uma série de obrigações de reparação ambiental e socioambiental para a Samarco e suas acionistas.

Em resposta à catástrofe, foi firmado o Termo de Transação e Ajustamento de Conduta (TTAC), que previu a criação da Fundação Renova para gerir os programas de recuperação e indenização. Paralelamente, as empresas foram alvo de multas ambientais significativas.

A controvérsia tributária emergiu quando a Samarco deduziu os valores gastos com essas reparações e multas da base de cálculo do IRPJ e da CSLL, nos anos-calendário de 2016 a 2019. Essas despesas foram lançadas em contas contábeis específicas, como “despesas com recuperação ambientais e socioambientais”, “aporte patrimônio social Fundação Renova”, “despesa com serviço gratuito Fundação Renova” e “multas provenientes de rec ambientais e socioambientais”, totalizando o valor bilionário que a PGFN buscou reaver.

As teses em disputa: necessidade operacional vs. sinistro excepcional

A tese da fiscalização, defendida pela PGFN, era clara: tais gastos não se enquadravam no conceito de despesas operacionais dedutíveis, pois não possuíam os requisitos de necessidade, normalidade e usualidade, conforme o artigo 47 da Lei nº 4.506/1964 (e reproduzido no artigo 299 do Regulamento do Imposto de Renda – RIR/99). O procurador da PGFN, Vinícius Campos, argumentou que permitir a dedução desses valores criaria um “sistema contraditório”, onde o Estado, ao mesmo tempo que pune, incentiva a prática de ilícitos, e representaria uma socialização indevida do risco empresarial.

A Samarco, por sua vez, defendeu a dedutibilidade com base em diversos pilares:

  • Responsabilidade Objetiva: Os gastos decorriam da sua responsabilidade objetiva de reparar e indenizar danos ambientais, independentemente de dolo ou culpa, conforme a Lei da Política Nacional do Meio Ambiente (Lei nº 6.938/81).
  • Risco Inerente à Atividade: Alegou que o rompimento da barragem era a materialização de um risco inerente à atividade de mineração, sendo as despesas de reparação, portanto, “necessárias” para a continuidade do negócio.
  • Natureza Reparadora, Não Punitiva: Insistiu que os custos de reparação não tinham caráter sancionatório, distinguindo-os das penalidades.
  • Ausência de Vedação Legal Expressa: Especificamente para as multas ambientais, argumentou a inexistência de norma que vedasse expressamente a dedução de penalidades de natureza não tributária.
  • Inaplicabilidade do Art. 47 à CSLL: Subsidiariamente, defendeu que o conceito do Art. 47 era restrito ao IRPJ.

A firme posição do CARF: um marco na indedutibilidade

O CARF, ao julgar o recurso voluntário da Samarco, negou provimento ao pedido da mineradora e manteve integralmente as autuações fiscais, consolidando o entendimento da PGFN.

A decisão do colegiado do CARF foi enfática em rejeitar os argumentos da Samarco. As preliminares de nulidade por incompetência da DRF e de decadência para o ano de 2017 foram afastadas com base na Súmula CARF nº 27/2009 e na aplicação do Art. 173, I, do CTN, respectivamente, uma vez que se tratava de glosa de prejuízo fiscal sem pagamento antecipado do tributo.

No mérito, a Corte Administrativa Tributária destacou os seguintes pontos:

  • Caráter Extraordinário do Desastre: O rompimento da barragem de Fundão foi classificado como um “evento extraordinário e catastrófico”, que transcende o conceito de “risco inerente” ou “despesa usual” de uma atividade produtiva. 

“Entendo que, a magnitude do desastre de Mariana transcende o conceito de ‘risco inerente’ ou ‘despesa usual’. Trata-se de um evento extraordinário e catastrófico, cujas consequências não podem ser consideradas parte ordinária da atividade de mineração. As despesas decorrentes não visam à geração de receita ou à manutenção da atividade produtiva, mas sim à reparação de um dano ilícito de proporções imensuráveis.”

  • Indedutibilidade de Despesas de Reparação: O CARF concluiu que os valores pagos para reparar danos ambientais e socioambientais, mesmo que fixados em acordos judiciais como o TTAC, não constituem despesas necessárias às atividades da pessoa jurídica, pois foram efetuados para reparar “algo que não deveria ter perpetrado”.
  • Indedutibilidade de Multas Não Tributárias: A decisão reforçou a indedutibilidade de multas decorrentes de infrações de natureza não tributária. O Parecer Normativo CST nº 61/1979 e as Instruções Normativas RFB são claros ao vedar a dedução de multas com caráter punitivo, argumentando que “atos e omissões, proibidos e punidos por norma de ordem pública” não se revestem dos atributos de necessidade. 

Assim, as multas impostas por transgressões de leis de natureza não tributária serão indedutíveis.”

  • Simetria IRPJ e CSLL: O CARF validou a extensão das regras de dedutibilidade do IRPJ para a CSLL, entendendo que a base de cálculo desta última, em regra, segue as mesmas normas do Lucro Real, conforme Art. 13 da Lei nº 9.249/95.

Além do tributário: a lente da governança corporativa e da responsabilidade ambiental

Contudo, a análise deste caso não pode se esgotar na esfera puramente tributária. A decisão do CARF no caso Samarco envia um sinal inequívoco que transcende o cálculo de impostos, adentrando o campo da governança corporativa, da gestão de riscos e da responsabilidade dos administradores.

O lucro contábil, e por extensão o lucro real, é o balizador da saúde financeira da empresa e do seu valor para os stakeholders. Quando despesas de vulto, decorrentes de eventos tão impactantes como o de Mariana, são consideradas indedutíveis, o impacto fiscal direto sobre o resultado da empresa é amplificado. Isso eleva a importância da prevenção e da gestão proativa de riscos a um patamar estratégico e financeiro ainda mais crítico.

O dever de diligência do administrador e os custos dos desastres

A Lei nº 6.404/76, a Lei das Sociedades por Ações (LSA), estabelece um conjunto de deveres para os administradores, sendo o dever de diligência, previsto no artigo 153, um dos mais basilares:

Art. 153. O administrador da companhia deve empregar, no exercício de suas funções, o cuidado e diligência que todo homem ativo e probo costuma empregar na administração dos seus próprios negócios.

No contexto do caso Samarco, a decisão do CARF serve como um contundente lembrete de que o “cuidado e diligência” exigidos dos administradores devem necessariamente abranger a avaliação e mitigação de riscos ambientais e sociais. Se os custos de um desastre ambiental não são despesas operacionais dedutíveis, isso significa que a gestão do risco e a prevenção de tais eventos tornam-se ainda mais necessárias para a perenidade financeira da empresa.

Um administrador que, agindo sem o devido cuidado, não implementa ou fiscaliza políticas fortes de segurança e gestão ambiental, expondo a empresa a um sinistro de proporções bilionárias e, ainda por cima, não dedutíveis para fins fiscais, pode ter sua conduta questionada sob a ótica do Art. 153 da LSA. Embora a responsabilidade do administrador seja subjetiva (baseada em culpa ou dolo), a falha em gerir riscos conhecidos (como os de barragens de rejeitos) pode configurar a negligência ou imprudência necessária para a responsabilização civil (Art. 158 da LSA).

O impacto no ESG e a prevenção como prioridade fiscal

A decisão do CARF se alinha perfeitamente com os crescentes movimentos de Environmental, Social, and Governance (ESG). Ela reforça que a responsabilidade ambiental e social não é apenas uma questão de imagem ou conformidade regulatória, mas tem implicações financeiras diretas e significativas. Empresas não podem mais contar com a possibilidade de “externalizar” parte dos custos de seus desastres para o contribuinte, via benefício fiscal.

Este novo cenário exige que a prevenção de ilícitos e de catástrofes ambientais seja vista não apenas como uma obrigação legal ou ética, mas como uma estratégia fiscal fundamental. O que antes poderia ser interpretado como um “custo de fazer negócios” com alguma mitigação tributária, agora é categoricamente um custo integral e não dedutível, elevando drasticamente o peso financeiro de tais eventos e o imperativo de evitá-los.

Implicações práticas e recomendações para a gestão

A complexa interação entre o direito tributário e a gestão de desastres exige que as empresas e seus administradores reavaliem suas estratégias:

  • Revisão Aprofundada das Políticas de Risco: As empresas devem revisar e fortalecer suas políticas de gestão de riscos ambientais e sociais, considerando não apenas a probabilidade e o impacto do evento, mas também as consequências fiscais de tais custos.
  • Fortalecimento dos Controles Internos: É fundamental investir em sistemas de controle interno e due diligence para garantir a conformidade regulatória e a prevenção de falhas operacionais que possam levar a eventos catastróficos.
  • Provisionamento para Contingências: O planejamento financeiro deve considerar a indedutibilidade de eventuais custos de reparação e multas em caso de desastres. O provisionamento adequado para tais contingências deve refletir o impacto fiscal integral.
  • Conformidade e Prevenção como Estratégia Fiscal: A prevenção de ilícitos e de danos ambientais deve ser priorizada como uma das mais eficazes estratégias de otimização fiscal, uma vez que os custos associados a esses eventos são, em grande parte, indedutíveis.
  • Educação e Conscientização: Administradores e conselhos devem buscar conhecimento aprofundado sobre as implicações fiscais de eventos não operacionais e as interseções entre responsabilidade ambiental, governança corporativa e direito tributário.

Conclusão: o custo real da indiligência e a nova perspectiva da tributação

A decisão do CARF no caso Samarco não é meramente um parecer técnico sobre a dedutibilidade de despesas. Ela se estabelece como um poderoso lembrete de que a atuação dos administradores vai muito além da conformidade fiscal. A responsabilidade pautada pelo dever de diligência exige uma visão holística da gestão, que considere não apenas os aspectos contábeis e tributários, mas a integralidade da saúde financeira e reputacional da companhia, a proteção de seu capital e a prudência na gestão de riscos.

A dicotomia entre o que é permitido fiscalmente e o que é prudente do ponto de vista da gestão e da governança é um desafio constante. O caso Samarco demonstra que o custo de um desastre, seja ele ambiental ou de outra natureza excepcional, é muito maior do que a simples soma dos valores de reparação e multas. Ele inclui um impacto fiscal amplificado, que não pode ser diluído por benefícios tributários, forçando as empresas a internalizar e gerenciar integralmente esses riscos.

Nesse cenário, a atuação do “homem ativo e probo” não se limita a evitar autuações fiscais, mas se estende a garantir a perenidade e a solidez da empresa, protegendo os interesses de todos os stakeholders. A decisão do CARF, portanto, é um convite à reflexão sobre a importância de uma governança corporativa sólida e de administradores que compreendam plenamente suas responsabilidades, conduzindo com sabedoria a gestão empresarial, onde o custo da indiligência pode ser verdadeiramente bilionário e, em grande parte, intransferível.

Publicado no Lex Legal.

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