Ayres Westin Advogados

Créditos de ICMS: a contagem regressiva para proteger o patrimônio empresarial

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Reforma tributária ameaça créditos de ICMS e PLP 108/2024 exige gestão ativa para preservar patrimônio

A Emenda Constitucional nº 132, de 20 de dezembro de 2023, que delineia a extinção gradual do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) até 2033, com sua substituição pelo Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), impõe um desafio de magnitude considerável às empresas brasileiras. Nesse contexto, um estoque de créditos tributários acumulados, estimado em valores substanciais – como os R$ 3,2 bilhões habilitados para devolução apenas no Paraná, além de R$ 1,3 bilhão em análise –, encontra-se sob escrutínio rigoroso. O Projeto de Lei Complementar (PLP) nº 108/2024, destinado a regulamentar o aproveitamento desses saldos, tem gerado apreensão significativa, suscitando questões fundamentais sobre a segurança jurídica e a liquidez desses ativos corporativos.

Embora a reforma tributária vise à simplificação e uniformização do sistema, o desconhecimento ou a negligência em relação às implicações na gestão desses créditos podem desaguar em prejuízos financeiros onerosos e, em muitos casos, irreversíveis. Este artigo busca elucidar os riscos inerentes ao modelo proposto, com ênfase na necessidade de uma abordagem proativa e estruturada para mitigar perdas patrimoniais.

O propósito da reforma tributária: transição com riscos inerentes

Para compreender a relevância do PLP nº 108/2024, é imperioso revisitar a finalidade da reforma instituída pela Emenda Constitucional nº 132/2023. Conforme disposto em seu artigo 156-A, o IBS, de competência compartilhada entre estados, municípios e Distrito Federal, substituirá o ICMS e o ISS, promovendo uma unificação tributária que visa eliminar distorções fiscais e fomentar a competitividade. A transição, prevista para ocorrer de forma gradual entre 2026 e 2033, inclui a extinção total do ICMS em 2033, com alíquotas teste iniciais e uma gestão centralizada pelo Comitê Gestor.

Contudo, essa simplificação não dispensa as empresas da responsabilidade de gerir adequadamente seus créditos acumulados. A atratividade da reforma reside na padronização, mas ela não é um salvo-conduto para a inércia administrativa. Pelo contrário, exige atenção redobrada à comprovação e ao aproveitamento tempestivo desses saldos, sob pena de diluição de seu valor real. É aqui que reside a “armadilha” para muitos contribuintes, especialmente aqueles com acúmulos significativos decorrentes de exportações ou aquisições de ativos permanentes.

O modelo proposto no PLP 108/2024: uma moratória disfarçada?

O PLP nº 108/2024, em análise no Congresso Nacional, estabelece regras para a devolução e compensação dos créditos de ICMS acumulados até 2032. Pelo texto, os saldos credores apropriados e não compensados serão reconhecidos mediante pedido protocolado entre 2033 e 2038, com homologação estadual em até 24 meses (ou 60 dias para créditos de ativo permanente). A devolução ocorrerá em 240 parcelas mensais (equivalente a duas décadas), corrigidas exclusivamente pelo Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA). No que tange aos juros reais, o PLP estabelece que o ressarcimento em espécie (quando aplicável) será efetuado em até 90 dias após o encerramento do mês em que ocorreria a compensação, sendo vedada a incidência de acréscimos de qualquer natureza. Isso implicitamente significa que não haverá juros reais se o ressarcimento for feito dentro do prazo.

Tal arranjo, como destacado em análises especializadas, dilui drasticamente o valor presente desses ativos, transformando-os em meras expectativas futuras sujeitas a incertezas burocráticas. Para grandes grupos empresariais, os impactos são severos: uma companhia processadora de alimentos reporta R$ 4,1 bilhões em créditos, enquanto uma líder no setor de papel e celulose acumula R$ 2,15 bilhões, com potenciais perdas no fluxo de caixa e na saúde financeira decorrentes da prolongada imobilização. Ademais, a possibilidade de transferência a terceiros só se efetiva a partir de 2038 para homologações tácitas, e o ressarcimento em espécie depende de regulamentação orçamentária, agravando o quadro de insegurança.

Essa estrutura suscita preocupações jurídicas profundas, colidindo com preceitos constitucionais basilares, como o princípio da não cumulatividade (artigo 155, § 2º, I, da CF/88), que assegura o abatimento integral e imediato do imposto anterior. A diluição forçada desses créditos, em detrimento do patrimônio privado para preservar a receita estatal, aproxima-se perigosamente da vedação ao confisco (artigo 150, IV, da CF/88). Mais grave ainda é a conversão de direitos creditórios consolidados em expectativas sujeitas a homologações futuras, o que pode ensejar questionamentos judiciais.

As consequências da inércia: perdas e judicialização

Quando os créditos não forem comprovados ou aproveitados tempestivamente, o PLP impõe uma gradação de consequências que pode escalar para perdas irreparáveis. A correção limitada pelo IPCA, sem juros, implica uma erosão real do valor, especialmente em cenários inflacionários. Inexistindo compensação viável, os saldos podem ser transferidos, mas com restrições que limitam sua liquidez. Para empresas exportadoras, isentas de ICMS na saída, o acúmulo é inerente, e a reforma pode reproduzir impasses históricos, como os da Lei Kandir, levando a uma massiva judicialização.

Ademais, a experiência demonstra que a busca por socorro judicial, embora válida, pode resultar em frustração dada a imprevisibilidade das cortes. A história recente alerta: adiar a resolução pode transformar créditos em litígios prolongados, minando a estabilidade empresarial.

Estratégias para a conformidade e proteção patrimonial

Diante da complexidade e dos riscos impostos pelo PLP nº 108/2024, é imperativo que as empresas – de exportadoras a redes varejistas – adotem estratégias proativas. Recomenda-se uma auditoria fiscal rigorosa do estoque de ICMS, classificando-o por prazo e natureza, e modelando financeiramente o impacto da perda de valor real. A protocolização antecipada de pedidos de homologação e a impetração de ações mandamentais para acelerar análises administrativas são medidas iniciais, mas não definitivas.

Muitas vezes, oportunidades de compensação ou monetização, invisíveis para equipes internas, podem ser desvendadas por profissionais experientes, mapeando cenários e traçando rotas que otimizem a recuperação. Paralelamente, participar do debate legislativo, propondo emendas para correção pela Selic ou prazos reduzidos, é um passo inadiável. A intervenção de consultoria especializada é fundamental para navegar esse cenário, protegendo o patrimônio e assegurando liquidez em um ambiente tributário em transformação.

Portanto, a reforma tributária, embora promissora, não exime as empresas da responsabilidade de uma gestão fiscal robusta. A flexibilidade da transição não deve ser confundida com permissão para a inércia. Negligenciar essas formalidades pode converter a aparente modernização em uma armadilha custosa, resultando em prejuízos que minam os benefícios esperados. A lição é clara: a proatividade e a conformidade são pilares inegociáveis para a segurança jurídica e financeira na gestão de créditos de ICMS.

Publicado no Monitor Mercantil.

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