Por Hugo Gabriel Machado Amaral e Matheus Fellipe Pereira
Desde a edição da Emenda Constitucional nº 132, de 2023, que instituiu a reforma tributária, as entidades que possuem saldo credor das contribuições sociais ao Programa de Integração Social (PIS) e à Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social (Cofins) preocupam-se com a forma como se dará o momento de transição para a utilização desses saldos acumulados, em razão da extinção dessas contribuições a partir de 1º de janeiro de 2027, quando passarão a ser substituídas pela Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS) no âmbito federal.
Isso porque o artigo 135 da Constituição delegou à lei complementar a competência para disciplinar a forma de utilização desses créditos. Por sua vez, a Lei Complementar (LC) nº 214, de 2025, por força do artigo 378 e seguintes, estipulou a validade e a forma de como utilizar esses créditos, mas não deixou claro se a exigência de estar registrado na escrituração se aplica exclusivamente até 1º de janeiro de 2027 ou se permite lançamentos posteriores.
O texto constitucional, ao empregar as expressões “não apropriados” e “não utilizados”, reconheceu as possibilidades de crédito, respectivamente, de “crédito extemporâneo” e “saldo de crédito ordinário”. Isto é, os créditos “não apropriados” são aqueles que não foram reconhecidos no momento temporal de sua competência, e, por óbvio, ainda não foram utilizados, enquanto os créditos “não utilizados” representam o saldo de crédito devidamente constituído à disposição para ser utilizado em período subsequente.
O artigo 378 da LC nº 214, de 2025, tentou reproduzir o texto constitucional, mas, ao sintetizar o texto, causou dissonâncias nas possíveis interpretações. Para a compreensão, segue a íntegra do artigo:
Art. 378. Os créditos da Contribuição para o PIS/Pasep e da Cofins, inclusive presumidos, não apropriados ou não utilizados até a data de extinção dessas contribuições:
I – permanecerão válidos e utilizáveis na forma deste Capítulo, mantida a fluência do prazo para sua utilização;
II – deverão estar devidamente registrados no ambiente de escrituração dos tributos mencionados no caput, nos termos da legislação aplicável;
Faltou estipular prazo para escrituração de créditos
A forma de utilização expressa na lei complementar considerou válidos e utilizáveis os saldos de crédito no prazo da legislação, desde que devidamente registrados na EFD-Contribuições. Contudo, vale dizer que, em uma análise perfunctória, a referida lei complementar olvidou-se de estipular até quando deverá estar escriturado os referidos créditos.
A divergência interpretativa surge porque o caput do artigo estabelece como marco temporal a data de extinção das contribuições, em 1º de janeiro de 2027. Diante disso, surge o questionamento: esse prazo se aplica também aos requisitos previstos nos incisos, especialmente à obrigatoriedade de escrituração dos créditos?
Assim, há dois cenários possíveis: só poderão ser utilizados os créditos que forem escriturados e não foram utilizados até 1º de janeiro de 2027 ou os créditos não escriturados até janeiro de 2027 poderão ser utilizados, desde que sejam feitas as retificações e escriturações adequadas do período de competência.
O primeiro cenário resultaria na perda de todos os créditos extemporâneos não escriturados até a data de janeiro de 2027, pois as retificações posteriores não seriam aceitas, uma vez que estariam fora do prazo do caput do artigo 378, da LC nº 214, de 2025.
Por sua vez, o segundo cenário permitirá a retificação e a escrituração de eventuais créditos extemporâneos, considerando que a exigibilidade desses créditos permanece amparada pelo prazo prescricional de cinco anos, nos termos do artigo 168 do Código Tributário Nacional (CTN), bem como pelo permissivo legal constante do artigo 3º, § 4º, das Leis nº 10.637, de 2002, e nº 10.833, de 2003.
Disfunção técnica
A indefinição normativa acerca do prazo limite para escrituração dos créditos revela uma disfunção técnica relevante, na medida em que tensiona princípios estruturantes do sistema tributário, como segurança jurídica, capacidade contributiva e não cumulatividade. Sob a ótica dogmática, a ausência de critério temporal objetivo compromete a estabilidade dos direitos creditórios já incorporados à esfera patrimonial do contribuinte, sobretudo porque, no regime de apuração não cumulativa, o fato jurídico gerador do crédito ocorre no momento da aquisição dos insumos ou da realização das operações que ensejam o direito creditório, independentemente de sua escrituração formal imediata.
Admitir uma interpretação restritiva, que condicione o aproveitamento dos créditos à sua escrituração até a data de extinção das contribuições, significa subverter a lógica do próprio regime não cumulativo, transformando um direito material — com natureza de crédito tributário a favor do contribuinte — em mera faculdade formal subordinada a requisito procedimental não expressamente previsto na norma de competência. Tal interpretação afronta diretamente a cláusula pétrea da vedação ao confisco (artigo 150, IV, da CF) e desnatura a funcionalidade econômica do princípio da neutralidade, recém-expresso no artigo 156-A, §1º, da Constituição.
Embora recentemente incluído de forma expressa no texto constitucional, o princípio da neutralidade — que tem por escopo minimizar a interferência tributária nas relações de consumo — sempre integrou a ordem constitucional como um princípio de natureza implícita. Tal condição, contudo, não lhe retira eficácia nem força normativa, uma vez que, como bem preleciona a professora Martha Leão, princípios implícitos possuem a mesma hierarquia e densidade normativa dos expressos: “o simples fato de agora serem princípios expressos em vez de implícitos não altera diretamente sua força normativa (sua relação com outras normas), nem sua eficácia normativa (suas funções eficácias)”1.
Análise constitucional validaria os créditos
Com base em uma análise constitucional que considera válidos os créditos que cumpram os requisitos da legislação, o aproveitamento do crédito extemporâneo não deveria passar por qualquer limitação, haja vista que trata-se de um direito adquirido e não uma mera faculdade ao contribuinte.
Nessa contenda, os princípios constitucionais que norteiam o aproveitamento de crédito como meio de exteriorizar a não cumulatividade dos tributos indicam que o primeiro cenário ora discutido é frágil e destoante da legislação constitucional. Contudo, dado o histórico restritivo da Fazenda, este talvez seja o momento para o contribuinte se organizar e estruturar a apropriação dos saldos de créditos de PIS e Cofins.
Portanto, ante uma análise jurídico-constitucional, sob o prisma dos princípios da não cumulatividade e da neutralidade, impõe-se uma interpretação que permita a utilização plena desses créditos, inclusive os extemporâneos, respeitando-se os prazos prescricionais, independentemente da data de extinção das contribuições, com o fito de assegurar, assim, a efetividade dos direitos creditórios dos contribuintes no cenário da transição tributária.
- LEÃO, Martha. A Reforma Tributária sobre o Consumo e a Inexistência de Ruptura Paradigmática. Revista Direito Tributário Atual v. 58. ano 42. p. 389-409. São Paulo: IBDT, 3º quadrimestre 2024. ↩︎