Ayres Westin Advogados

Extrafiscalidade: insegurança jurídica e risco do Imposto Seletivo

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Por Daniel Dioiti Kuba e Marcelo Casseano Coppio

Há muito tempo, um dos inimigos mais comuns do ser humano é a balança. A luta contra o sobrepeso é antiga e movimenta a indústria como um todo. Tal problemática trouxe um dilema moderno: devo tomar refrigerante “zero” ou “normal”? A resposta, que antes nascia da consciência ou da vaidade, agora vem do bolso.

É que, em 2025, a LC nº 214/2025 entrou em vigor no silêncio da madrugada, como quem chega sem bater. No dia seguinte, o refrigerante com açúcar ficou mais caro. Muito mais caro. E o motivo? Um novo tributo: o Imposto Seletivo, apelidado de “sin tax“, o imposto do pecado.

A ideia, dizem, é nobre. Reduzir o consumo do que faz mal, estimular escolhas saudáveis e premiar o autocuidado. Agora, a escolha pela bebida “zero” ao invés da “normal” vai muito além da estética almejada, não pela higidez, mas sim pelo preço mais baixo que a primeira pode oferecer.

Extrafiscalidade do Imposto Seletivo

Este artigo analisa o novo Imposto Seletivo sob a ótica da extrafiscalidade. Um imposto que não quer apenas arrecadar, mas ensinar. Educar pela dor do bolso, intervindo pela lógica da virtude, e, talvez, avançar um pouco além do que se espera de um Estado democrático.

Incluído pela EC n° 132/2023, o Imposto Seletivo passou a ser previsto expressamente no artigo 153, inciso VIII, da Constituição, incidindo sobre a produção, comercialização ou importação de bens e serviços prejudiciais à saúde ou ao meio ambiente.

Sua regulamentação, atualmente positivada pela Lei Complementar nº 214/25, visa a delimitar com maior precisão seu campo de incidência, estabelecendo critérios para definição dos produtos sujeitos, alíquotas progressivas e mecanismos de controle.

Como funciona o Imposto Seletivo

Na proposta atual, o parágrafo primeiro do artigo 409 da referida LC instituiu os serviços que o Imposto Seletivo irá incidir, sendo todos eles considerados prejudiciais ao meio ambiente ou a saúde, dentre eles veículos, produtos com tabaco, bebidas alcoólicas e açucaradas, entre outros.

A base de cálculo do tributo pode ser o percentual sobre o valor do bem ou o valor fixo por unidade, a depender da técnica mais eficaz para inibir o consumo. Já as alíquotas deverão ser moduláveis conforme o grau de nocividade do produto ou serviço, na qual bens considerados mais prejudicais serão mais tributados.

Por sua natureza institucional, tal imposto se diferencia dos demais tributos sobre o consumo por sua natureza expressamente extrafiscal, embora não se descarte sua função arrecadatória complementar.

Funções do imposto

Isto posto, trazemos à tona o antigo questionamento que versa acerca do quanto a tributação interfere na nossa vida e na economia, principalmente com o viés extrafiscal, promovido pelo governo.

Em primeira análise, é fundamental diferenciar a fiscalidade e a extrafiscalidade de um produto. Desde que o mundo é mundo, e os tributos são tributos, existem duas funções básicas para a tributação: arrecadar e intervir. A primeira é evidente, referindo-se à arrecadação de receitas públicas, essencial ao custeio do Estado e à aplicação das políticas públicas. A segunda, nem tanto. Mas é nela que mora a complexidade do nosso tema.

A extrafiscalidade é a tentativa do Estado de usar o tributo como ferramenta de indução de comportamentos. Não se trata, portanto, de arrecadar por arrecadar. Trata-se de moldar hábitos, corrigir desvios, premiar virtudes, ou até mesmo punir excessos. Dessa forma, os impostos extrafiscais são aqueles com finalidade reguladora (ou regulatória) de mercado ou da economia de um país, voltando-se para a correção de externalidades1, ou seja, diz-se que se trata de um tributo extrafiscal quando os efeitos extrafiscais são deliberadamente pretendidos pelo legislador, que se utiliza do tributo como instrumento para dissuadir ou estimular determinadas condutas2.

Note que a extrafiscalidade orienta-se para fins outros que não a captação de recursos para o Erário, visando a corrigir externalidades. Dentre os impostos extrafiscais, podem ser citados o Imposto de Importação (II), o Imposto de Exportação (IE), o Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI), o Imposto sobre Operações Financeiras (IOF)3. Agora, o Imposto Seletivo (IS) adentra no rol do respectivo grupo.

Esses tributos compartilham características técnicas que os tornam adequados à extrafiscalidade, como a possibilidade de alteração de alíquotas por ato do Poder Executivo, incidência sobre bens de consumo específico, e função de regulação de mercado, seja por incentivo ou desincentivo. O novo Imposto Seletivo apresenta uma base de incidência irrestrita, limitando-se a produtos que afetam negativamente a saúde pública ou o meio ambiente, possuindo o intuito primordial de desincentivar o consumo de determinados produtos e serviços, e não simplesmente de gerar recursos para a União4.

Redução de consumo

A pretensão, então, é clara: reduzir o consumo de produtos nocivos à saúde e ao meio ambiente: bebidas açucaradas, cigarros eletrônicos, produtos ultraprocessados. A lógica é simples: se faz mal, paga mais. Se quer pagar menos, escolha o que faz bem. Mas essa lógica, por mais atraente que pareça, esconde armadilhas constitucionais e filosóficas, como por exemplo, a quais bens, serviços e mercados estarão sujeitos ao Imposto Seletivo. A ausência de critérios claros e objetivos abre margem para pressões setoriais. O espectro de bens e serviços considerados prejudiciais à saúde ou ao meio ambiente é extremamente amplo, sendo difícil a definição pelo legislador de quais produtos o IS deve ser aplicado e a qual alíquota.

Há um detalhe sutil, embora fundamental, na lógica do Imposto Seletivo: ele não apenas encarece um produto, mas emite um juízo de valor, em que demonstra o que é certo ou não consumir. O Estado, como ente político, é instável. Muda com o governo, com o Congresso, com o humor das urnas. O que hoje é “pecado fiscal” pode amanhã ser incentivo tributário.

Além disso, o tributo pode possuir, mesmo que implicitamente, função arrecadatória, assim como ocorreu com o IOF. A partir dos Decretos 12.466/2025, 12.467/2025 e 12.499/2025, o governo tentou de forma imediata e abrupta aumentar as alíquotas de créditos, câmbios e seguros e, consequentemente, a arrecadação do IOF.

Apesar do veto tanto do Congresso quanto do STF, tal prática demonstra que, mesmo impostos com características extrafiscais como o IOF, podem sofrer de políticas fiscais arrecadatórias e ter o seu caráter fiscal evidenciado. Outrossim, por mais que o caráter extrafiscal do IS seja uma importante característica distintiva e parte fundamental de sua implementação, não pode ser desconsiderado a possibilidade de o governo utilizá-lo com caráter fiscal, de arrecadação para os cofres públicos.

Insegurança jurídica

Aqui está o risco real: a intervenção econômica por via tributária sem balizas objetivas. O resultado? Insegurança jurídica e risco regulatório, trazendo uma sociedade tutelada por um ente que oscila entre protetor e invasivo. Além disso, há o problema prático. Como mensurar o real impacto do Imposto Seletivo sobre os hábitos da população? O que garante que o aumento do preço levará à redução do consumo? O desafio, portanto, não está apenas na constitucionalidade da norma, mas na sua eficácia social. E toda política pública ineficaz, ainda que bem-intencionada, tende a ser injusta.

O IS pode ter seu papel. Mas precisa ser aplicado com limites claros, critérios técnicos e respeito à Constituição. Do contrário, deixa de ser instrumento de política pública e vira mecanismo de coerção moral, mas com aparência de virtude e efeito de opressão.

Publicado no ConJur.


Referências bibliográficas

SABBAG, Eduardo. Manual de Direito Tributário. 17 ed. São Paulo
PAULSEN, Leandro. Curso de Direito Tributário Completo. 15 ed. Porto Alegre
PONTALTI, Matheus. Manual de Direito Tributário. 6 ed. São Paulo: Editora JusPodvm, 2025
BRASIL, Lei Complementar n° 214, de 16 de janeiro de 2025. Disponível aqui
BRASIL, Emenda Constitucional n° 132, de 20 de dezembro de 2023. Disponível aqui
BRASIL, Decreto n° 12.466/2025, de 22 de maio de 2025. Disponível  aqui
BRASIL, Decreto n° 12.467/2025, de 23 de maio de 2025. Disponível  aqui
BRASIL, Decreto n° 12.499/2025, de 11 de junho de 2025. Disponível  aqui

  1. SABBAG, Eduardo. Manual de Direito Tributário. 17 ed. São Paulo ↩︎
  2. PAULSEN, Leandro. Curso de Direito Tributário Completo. 15 ed. Porto Alegre ↩︎
  3. SABBAG, Eduardo. Manual de Direito Tributário. 17 ed. São Paulo ↩︎
  4. PONTALTI, Matheus. Manual de Direito Tributário. 6 ed. São Paulo: Editora JusPodvm, 2025 ↩︎

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